Crónica nº4 “O Jovem e o Mar” publicada na Revista de Marinha

Desde muito jovem tenho o sonho de viver da minha paixão pelo Mar. A ideia de passar a maior parte do meu tempo a velejar, a conhecer novas pessoas e a proporcionar-lhes experiências únicas era tudo para mim.
Com 21 anos já tinha a Sea Emotion criada e a operar há 2 anos com esse objectivo. No verão conseguia ter algum trabalho, mas logo que chegava ao fim de Setembro, tinha que esperar até ao mês de maio para voltar a receber reservas. Não era fácil, mas sempre acreditei que seria possível encontrar soluções que trouxessem maior estabilidade e segurança à minha empresa, para que realmente pudesse viver dessa paixão.
Foi em meados de Setembro de 2011 que uma chamada do proprietário do Moody 56, um autêntico veleiro de luxo, me fez acreditar que a minha empresa iria dar o grande passo para ser uma empresa de referência.
Este veleiro estava atracado há meses na Marina de Vilamoura e o Sr. Rui, sabendo das minhas aspirações empreendedoras, propôs-me que eu levasse o seu veleiro para Lisboa para o rentabilizar. Foi a excitação total!

Com uma embarcação deste “gabarito”, podia organizar passeios mais caros e até propor uma espécie de “time-sharing” a empresas e executivos de topo para que vivessem a experiência de serem proprietários por uma fracção mínima do custo e sem as chatices inerentes de quem possui uma embarcação. Este modelo de partilha de horas, como existe no sector dos jatos privados, parecia ser a solução ideal para dar a estabilidade e segurança que tanto procurava.
Assim que recebi a chamada, fui ter com o Sr. Rui ao seu escritório em Lisboa para ele me entregar a chave e seguir rumo a Vilamoura.
Lembro-me de ter passado rapidamente os olhos pelas previsões meteorológicas que indicavam uma forte probabilidade de ventos superiores a 35 nós e rajadas de 50 nós durante a noite e vagas superiores a 3 metros. Não eram, de todo, as condições ideais, mas ainda assim decidi fazer a viagem na mesma. Convidei 4 amigos (3 deles sem qualquer experiência) para virem comigo e ainda convidei os meus irmãos mais novos. Assim que chegou aos ouvidos do meu pai, ele proibiu os meus irmãos de irem nesta aventura. Ainda me disse para ir uns dias mais tarde, mas eu não lhe dei ouvidos…
Chegámos já de noite a Vilamoura e com toda a pressa para largar. Foi chegar e “dar à chave”. Até as nossas bagagens foram arrumadas já a navegar. Não verifiquei nada no veleiro, nem me lembro de ter visto se o tanque de combustível tinha gasóleo suficiente para chegarmos a Lisboa, caso fosse necessário fazer a viagem toda a motor. Só tinha tido uma experiência naquele veleiro num pequeno cruzeiro ao Pôr-do-Sol umas semanas antes, quando conheci o proprietário.
Mas os níveis de excitação estavam incontroláveis, e os níveis de confiança e optimismo altos de mais.
A primeira etapa da viagem (Vilamoura-Lagos) foi um sonho! Abrimos o pano todo à saída da marina, desligámos o motor e seguimos a uma velocidade média de 9 nós, aproveitando a nortada de 18-20 nós. À medida que nos íamos aproximando de Sagres, o vento foi aumentando…

Tentámos enrolar metade das velas, mas só conseguimos enrolar a genoa. A enorme vela grande teimava em colaborar e cada vez o vento se tornava mais forte. A vela grande era enrolada através de um cabo sem-fim que fazia fricção num molinete que por sua vez fazia rodar o enrolador. Mas a fricção não existia e soube mais tarde que o cabo sem fim tinha sido trocado por um tipo de cabo que não era o indicado que tornava a sua simples tarefa numa tarefa difícil quando havia pouco vento, quanto mais com 30 nós de vento.
Este imprevisto deveria ter-me feito mudar o plano e regressar a Lagos ou Portimão para passar a noite ou simplesmente para enrolar a vela grande num local mais abrigado. Mas não foi isso que aconteceu…
Liguei o motor e insisti em enrolar a vela grande com 30 a 40 nós de vento e ondas de 4-5 metros junto ao Cabo de São Vicente. A vela batia com tanta força que acabou por se rasgar e bater ainda mais como se fosse uma bandeira com 15 metros de altura. Num rasgo de loucura, às tantas da noite, pedi ao Saúl, que era o único dos tripulantes que tinha experiência, para segurar a roda de leme e saltei para o mastro de forma a conseguir enrolar a vela à manivela directamente no molinete. Graças a Deus não caí ao Mar e consegui agarrar-me com todas as minhas forças ao mastro e dar à manivela.
Era o que eu deveria ter logo feito com o mar mais calmo, mas não tinha experiência com este tipo de sistema…
Com a vela finalmente enrolada e com a retranca toda riscada de tanto levar com o chicote do cabo, prosseguimos a nossa viagem. Mas assim que dobrámos o Cabo de São Vicente, o vento forte e as grandes vagas vindas na nossa direcção impediram-nos de avançar. Com o motor a fundo, o poderoso Moody não avançava para além de 2 milhas por hora.
Todo o nosso esforço não estava a compensar. Finalmente decidimos mudar o plano e regressámos a Sagres para fundear numa enseada abrigada do vento e das ondas.
Aproximámos a terra o máximo que conseguimos até ficarmos com “apenas” 25 nós de vento. Como a amarra não estava marcada, largámos toda a que havia na esperança que tivesse o comprimento suficiente para manter o veleiro seguro durante as 4-5 horas seguintes para descansar. Mas isso não aconteceu…
Durante toda a noite o estridente ranger da amarra manteve-nos acordados e a subir ao poço vezes e vezes sem conta para confirmar se continuávamos no mesmo sítio.
Assim que apareceu a primeira claridade e já com o vento abaixo dos 20 nós, decidimos retomar a nossa viagem rumo a Lisboa, estafados da noite anterior.

O estado de alma dos meus 4 amigos nesse dia não era o melhor… a experiência da noite anterior foi algo traumática e pediram por tudo para saírem em Sines e fazerem o resto do caminho de carro. Nesse dia o vento acalmou e a navegação foi toda feita a motor.
Para os meus amigos não irem de táxi para Lisboa lembrei-me de convidar o meu sogro e o meu irmão João a acompanharem-me no resto da viagem e a deixarem o carro para os meus amigos regressarem a suas casas.
Descansámos um pouquinho e seguimos viagem aproveitando o “mar de patas”. Qual espelho! Metade da viagem foi a cantar ao som da guitarra e a outra a contar as peripécias da noite anterior.
Assim que chegámos a Lisboa, o proprietário do veleiro foi nos ver para fazermos o levantamento dos estragos que foram mais do que podia imaginar e aguentar. Não foi apenas a vela rasgada, mas também a retranca toda riscada, várias roldanas totalmente gastas, partes da teca danificadas, casa das máquinas cheia de água e óleo e mais algumas peças partidas.
Fiz o que tinha a fazer e assumi a total responsabilidade com a promessa que iria deixar o seu luxuoso veleiro melhor do que eu o encontrei.
Com apenas 21 anos, não tinha condições financeiras para reparar todos os danos resultantes das minhas insensatas decisões. A única ideia que me ocorria era rentabilizar o veleiro de forma a libertar dinheiro para as reparações. Em Setembro e com a época alta a terminar, todos os meus esforços não se traduziam nos resultados de curto-prazo que eu tanto precisava. E a pressão para reparar o Moody 56 ia aumentando a cada dia.

Congelei a matrícula da faculdade e dediquei-me a tempo inteiro às reparações e a rentabilizar o veleiro. Mas mesmo assim não chegava. Foi então que a minha namorada Rita (agora minha esposa e mãe fantástica de 6 marujas) recebeu a aprovação de um crédito pessoal de quase 15 mil euros para comprar um carro novo. Mas em vez de ir ao stand comprar o seu carro de sonho, emprestou-me todo esse dinheiro para avançar nas reparações. Em poucos meses o dinheiro voou e só restou a prestação de 600€ por mês. Com apenas 21 anos e um sonho, eu e a Rita passámos a viver com uma renda pesada que nos acompanhou nos anos seguintes.
Lembro-me de chegar ao último dia de 2010 aliviado por esse ano estar a terminar e rezar com todo o fervor que em 2011 tivesse condições para me recompor, pagar a dívida ao banco, voltar à faculdade e recuperar a vida normal de um jovem de 21 anos.
Mas nem sempre a vida corre como planeamos, porque Deus pode ter planos bem maiores do que imaginamos…!
Durante o Réveillon a bordo do veleiro do meu pai, a Rita não estava nos seus melhores dias. Devia ser uma noite de festa com amigos e boa disposição, mas não para ela. Mesmo estando habituada a navegar, nessa noite passou todo o tempo enjoada. Depois de sair do barco ainda fomos a casa de uns amigos e mais enjoada estava. Não liguei e lembro-me de ter ficado um pouco chateado com o seu “mau-feitio” naquele ambiente de festa.

Uns dias mais tarde chegou a explicação que ninguém esperava: a Rita estava grávida da Sofia, a nossa primeira filha!
Casámos 2 meses depois com a prata da casa, no dia 17 de Março de 2011, para não se notar a barriga nas fotografias. O padre foi o meu irmão Marcos, o coro foi o Saint Dominics Gospel Choir do meu irmão João, e até o DJ foi o meu irmão David.
A cerimónia foi linda e emotiva e o a festa foi simples, mas simbólica na Messe dos Oficiais da Marina, em Cascais. Todos os convidados foram bastante generosos nas prendas na esperança que o jovem casal pudesse ter um início de vida mais folgado, mas todo o dinheiro que recebemos foi também gasto nas reparações do luxuoso veleiro.
Finalmente dia 8 dia Abril terminei os meus 21 anos, o ano de maior transformação da minha vida.
Ligando os pontos para trás, hoje dificilmente me sentiria tão realizado com a vida que tenho se não tivesse feito aquela viagem que resultou num prejuízo de mais de 20 mil euros e se a Rita não tivesse ficado grávida.
Mas com 21 anos não tive tanto esse discernimento. Mas há que ter fé e eu, graças a Deus, sou um homem de muita fé!
Saudações náuticas,
Bernardo Castro